sábado, 18 de outubro de 2008

Eloá. O que as mídias e os especialistas não discutem

Há menos de 24h do trágico desfecho do seqüestro de Eloá Cristina Pimentel, por Lindemberg Alves, todos atônitos procuramos “compreender” via mediação dos meios de comunicação social e de especialistas da segurança pública, psicólogos, e outros, um fato presente cotidianamente no noticiário: o assassinato de mulheres.
Muitas são as explicações que tentam dar conta do comportamento do jovem, cujo perfil durante o processo de negociação fora retratado pelos meios como de um rapaz tranqüilo, trabalhador, que tinha planos para casar. “Dificuldade de lidar com as frustrações”; “comportamento passional”, “de tolerância muito baixa às frustrações”, entre outros argumentos são discutidos publicamente em jornais, sites, rádio, enfim, em todo processo de agendamento desta lamentável crônica de mais uma tragédia midiatizada.
Inúmeros aspectos deste acontecimento são ressaltados na cobertura: o lugar, os protagonistas, o tempo, amigos, imagens, os momentos de negociação, os lugares de origem de Eloá e Lindemberg, as imagens... Todavia há um aspecto a ser considerado nesta notícia, e que passa intocado na cobertura de crimes que possuem semelhança com o homicídio de Eloá, o fato de que eles se relacionam com as desigualdades de gênero. Se nos negarmos a discutir também nos noticiários esta face da violência, será muito difícil à superação de algo que pode ser considerado, lamentavelmente, um padrão cultural vigente, a prática de crimes contra as mulheres.
Um breve monitoramento de mídia permite perceber a brutalidade e reificação de crimes como estes: eles não são apenas crimes passionais, podem ser situados numa teia complexa de construção de valores sociais que forjam um feminino fraco, vulnerável, incapaz e sem condições de decidir a própria vida, em contraposição a um modelo de masculinidade rígido e legitimado socialmente a partir da força, da dominação e do controle. São de certa maneira estes alguns dos elementos que mantém os mecanismos psíquicos do poder na constituição do sujeito e a na construção da sujeição.
Perceber os gêneros como processo de mediação do social é urgente para nos darmos conta da violência contra a mulher como um fenômeno social cujo aparecimento cotidiano nas mídias também precisa ser interpretado, refletido com e a partir dos veículos de comunicação e tendo como foco o papel social dos profissionais de imprensa.
A motivação de Lindemberg em manter seqüestrada Eloá e tentar por fim a vida da jovem se inter-relaciona com outros fatos conhecidos da sociedade brasileira, como os assassinatos de Ângela Diniz, Sandra Gominde, Daniela Perez, e ainda de inúmeros casos de violência e homicídios femininos que são noticiados, mas que carecem não de uma tentativa de tentar compreender o comportamento masculino, mas de questionar os valores sociais que se reproduzem nas trocas simbólicas e tecem ainda, tristemente, este predomínio do falo que oprime e extermina.
O tiro na virilha de Eloá não é só uma metáfora, mas uma expressão do ódio da tentativa frustrada de continuar mantendo o exercício do controle sobre o corpo das mulheres, por isto me sinto hoje também transpassada por esta bala.
Numa das notícias veiculadas sobre o Caso Eloá, dois personagens sobrenaturais surgiram: um anjinho e um diabinho que acompanhavam Lindemberg. Parece inacreditável, mas este recurso, muito comum entre homens que praticam violência contra as mulheres, aparece mais uma vez como uma máscara, uma performance que busca esconder o lado perverso de um imaginário social que em momentos como este é despertado pelos disparos protagonizados por um homem que representa os mecanismos simbólicos forjados socialmente e que negam cotidianamente às mulheres o seu direito a vida.


Sandra Raquew dos Santos Azevedo, jornalista.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Siba e Fuloresta do Samba


Ontem vi no Programa Ensaio, da Tv Cultura, a apresentação de Siba e Fuloresta do Samba. Não foi a primeira, e tenho por Deus que não será a última. Pois ao me deparar com a sonoridade, vitalidade e autenticidade do grupo me emociono profundamente, porque tenho um sentimento de pertença com tudo que trabalhos como este representam.
É a música e a poesia de mãos dadas, viva, falando do cotidiano, de gente, de humor, de existência. São palavras brincantes, percussões ousadas, num ritmo que nos põe em diálogo com os ciclos da vida. É ruptura com o parnasianismo, com a poesia vitrificada dos gabinetes e com os poetas de paletó e gravata.
Além do mais acho que a experiência da Fuloresta rompe radicalmente com uma noção atrasada e sem sentido de pensar a cultura a partir da hierarquização erudito-massivo-popular.
Trabalhos musicais como os de Siba e Fuloresta, Vó Mera, Zabé da Loca, das mulheres de Caiana dos Crioulos, do memorável Mestre Gasosa, entre outros, me falam fortemente de um vínculo entre sagrado e profano, e do Eterno que nos habita.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O Guerreiro de Ão.


Embora pareça estranho, Ão não é nenhum lugar imaginário. Por ser um espaço tribal, de lá surge, quando menos se espera, guerreiros que transcendem as temporalidades de suas aldeias.
Foi assim que numa noite urbana, no ponto mais oriental das Américas, e, em pleno apagão, encontrei sob a égide da Lua, há mais de uma década, um dos filhos de Tupã, que floresceu em Ão.
Ainda curumim teve, como tantos outros indígenas da cena contemporânea, que sair de sua tribo para cumprir a saga de herói, sua jornada.
Tímido, silencioso, seu sorriso revelava a plenitude de sua inocência e sua maneira ímpar de trazer resposta sem balbuciar sequer uma só palavra. Isto sempre me surpreendeu nele: cordeiro mudo.
Para crescer não se deixou amedontrar pelos ritos de iniciação, acompanhei alguns deles, ora de mãos dadas, ora à distância, os hiatos do espaço-tempo não foram empecilho para acompanhar sua trajetória de guerreiro-menino, “com a saga de seu tempo por sobre seus ombros”.
Este guerreiro de Ão, diferente de todos os que existiram até os dias de hoje, possuía um arco e flecha apontados para dentro de sí mesmo, e era deste lugar sangrento que ele extraia muitas cores e traços, objetos mágicos e de desejo humano e sagrado.
O guerreiro de Ão era artista, com a plástica dos contornos da vida densa ele uivava como lobo entre os canaviais que integravam a paisagem de sua Aldeia, e às vezes como caranguejo, para escapar de predadores, se entranhava no mangue, pregado na lama e no caos. Tudo isto para sobreviver a concretude, ao racional, ao pragmático, a esfera kafkiana que nos encerra diariamente, as prisões sem muros...
Soube outro dia, por criaturas aladas, que tentaram, mas sem êxito, fazer dele um grande mito, unificador de todas as ânsias e ambições. O guerreiro até que atentou para a fome de pajés algozes, e num destes jogos de poder se lançou como líder acreditando na honestidade de sua tribo.
Traído pelos seus e desolado em sua tribo, o guerreiro potiguara gritou, na escuridão do ser só, para Tupã que compreendeu o olhar deste guerreiro e lhe preparou uma canoa, e lhe contou um segredo às margens das águas que emergem do encontro do rio com o mar. Atento, ele ouviu, entrou na canoa, não disse uma só palavra, seguiu o curso do rio.
Não olhou para trás, ao se despir de todos encontrou na profundidade do rio a si mesmo. E, na quietude da noite em curso sorriu a Tupã, pois tinha em suas mãos o que sempre havia buscado.

Em homenagem ao meu amigo-artista, guerreiro potiguara, filho de Tupã. Com amor.

domingo, 5 de outubro de 2008

A mulher (des)habitada




Acordou na véspera de seu aniversário. Sessenta e oito anos faria. Nuvem entreaberta, o sol teve por território, aridez fatti. Como nunca fora acostumada a olhar-se no espelho, esquecera de si mesma, também pudera, com tanta gente ao redor não lhe sobrara tempo. As andanças por entre mercados, as varreduras do terreiro e o cuidado com as plantas eram seus portais por onde passeava de mãos dadas com a esperança. Sonhos? Os nutria no silêncio, quase secretos uivavam quando suas lágrimas escorriam. Dizia apenas que de tanto chorar seus olhos secara, eram como o Saara, desertos que vez por outra revelavam oásis.
As memórias eram o que mantinham sua vivacidade, pois nelas inventara seu próprio livro de estórias. Tapete de símbolos fragmentados que como gabeths era cheio de cores, matizes, sons de uma cidade que era seu templo. Percebera que nunca deixara este lugar, no cotidiano fazia suas reformas. Indo sempre lá, no mesmo lugar, o refazia para fazer de sua vida algo possível.
As ruas, agora em sépia, as conhecia de cor, eram suas fotografias movediças: os trilhos do trem, a velha estação, a casa do outro lado em ruínas, o mercado. Antigas vozes que ainda falavam. Sua rotina como uma moenda mastigava a tudo e a todos, e posteriormente recompunham a epiderme e raízes profundas, porque ela como uma árvore, ao passo que se erguia ao céu, penetrava o solo fértil da terra.

Embora ao olhar-se no espelho encontrasse pouco de si, era observando seus pés e mãos que se auto-reconhecia. Andando de mãos dadas com antepassados e predecessores percebia sua plenitude, mesmo que muitas coisas desse em falta. A ampulheta de seus dias parecia um cálice inesgotável.
Ela, nestes dias de movimento intenso das nuvens, celebra a perenidade intocada dos viventes e a ruptura com seu corpo, prisão sem muros, lugar de desejos e complexidade. Sente-se desabitada e livre, renascida. Com suas cinzas ao vento se reinventa com autonomia profunda. Nunca mais se perderá de si mesma, não mais desencontrará os seus.
Se por ventura alguém encontrar um oásis em seu deserto interior talvez seja a expressão de sorriso da mulher desabitada que acompanha a todos, dando sinais de que as andanças, intermináveis, por entre um labirinto quase surreal nos mantém num contínuo diálogo íntimo com o eterno em nós.
Por mais assustador que possa parecer este lugar, nele pode residir às chaves que abrem e fecham as feridas, as memórias, os rios de sonhos que fluem de um lugar para outro como folhas ao vento, mariposas ao sol, luas novas nas plantações...

Em memória ao nascimento de minha mãe, minha Árvore da Vida.

sábado, 4 de outubro de 2008

Abaixo todas as fogueiras!


As palavras acima foram usadas por Rose Marie Muraro ao me dedicar seu livro Texto das Fogueiras, bem no início do século XXI. O livro recorre aos escritos históricos da Inquisição mostrando o discurso dos inquisidores, aborda também a satanização da sexualidade feminina e as condutas sociais de subordinação das mulheres nas sociedades estruturadas a partir do discurso patriarcal.
Vendo recentemente nos jornais os acontecimentos envolvendo uma nova “caça às bruxas” às mulheres que viveram a experiência do aborto não fico surpresa, todavia vem um sentimento de indignação perante a hipocrisia de inúmeras instituições e setores sociais do Brasil, que para fugir do ampliação do debate sobre este fenômeno social complexo, optam por construir no espaço público uma reflexão e condutas pautadas na criminalização das mulheres.
Ao lançarmos um olhar unilateral sobre as práticas de abortamento no Brasil e na América Latina caímos num erro tosco de não compreendermos a realidade que vivemos, de observamos que os fenômenos da vida social, entre eles o aborto, está enredado em inúmeras questões, não apenas a realidade de pobreza pelas quais as mulheres têm que enfrentar cotidianamente, mas questões simbólicas de dominação muito mais profundas e que muitas campanhas pró ou contra o aborto certamente não dão conta em sua totalidade.
Aborto em nossas sociedades latino-americanas certamente é uma ferida aberta, um sintoma bem evidente não apenas da pobreza em si, porém das desigualdades sociais que fazem com que muitas mulheres em situação de abortamento ou não sejam tratadas nos serviços públicos de saúde como estorvo, como lixo humano. Não são poucos os relatos e as evidências dos maus tratos e homicídios pelo corpo feminino negligenciado pelo Estado brasileiro e pela conduta homicida do pensamento patriarcal. E disso pouco se comenta ou sequer se responsabiliza o Leviatã pela violência institucional cometida dia após dia.
Claro que as atitudes de acender as fogueiras da Inquisição pós-moderna são um caminho mais óbvio, até porque cria inevitavelmente todo um capital social que gera status as diversas instituições.
Difícil mesmo é tratar fenômenos sociais como este com lentes mais humanizadas, com olhares de abelha, multifocais, substituindo o fogo, a lenha e a inspiração bélica e o “instinto” da caça.
Quando penso nesta imagem de mulheres sendo caçadas por suspeitas de aborto acho tudo muito surreal, numa sociedade como a nossa e em qualquer outra. Em uma das matérias que vi dizem que só no Mato Grosso do Sul são mais de 10 mil. Dá para imaginar num sistema social-político-jurídico tão “justo” e “exemplar” como o nosso atuando com veemência para punir as “mulheres suspeitas”.
Fico então aguardando o dia em que esta mesma “eficiência” paire sobre os casos de violência sexual, homicídio, estupros, também para os casos de corrupção, pedofilia, mortes no trânsito, homofobia, de contaminação do leite, a fila na espera de transplante, etc, porque estes como tantas outras situações caóticas da realidade brasileira fazem parte de uma teia complexa de problemas sociais que precisam ser superados com mais coerência, um debate menos medíocre e com a superação de uma violência maior, estrutural e simbólica, da qual de uma forma ou de outra muitos de nós somos vítimas e, em alguns casos, algozes...

Sandra Raquew dos Santos Azevedo
é jornalista e autora do livro Gênero, Rádio e Educomunicação, pela Editora da UFPB.