segunda-feira, 6 de outubro de 2008

O Guerreiro de Ão.


Embora pareça estranho, Ão não é nenhum lugar imaginário. Por ser um espaço tribal, de lá surge, quando menos se espera, guerreiros que transcendem as temporalidades de suas aldeias.
Foi assim que numa noite urbana, no ponto mais oriental das Américas, e, em pleno apagão, encontrei sob a égide da Lua, há mais de uma década, um dos filhos de Tupã, que floresceu em Ão.
Ainda curumim teve, como tantos outros indígenas da cena contemporânea, que sair de sua tribo para cumprir a saga de herói, sua jornada.
Tímido, silencioso, seu sorriso revelava a plenitude de sua inocência e sua maneira ímpar de trazer resposta sem balbuciar sequer uma só palavra. Isto sempre me surpreendeu nele: cordeiro mudo.
Para crescer não se deixou amedontrar pelos ritos de iniciação, acompanhei alguns deles, ora de mãos dadas, ora à distância, os hiatos do espaço-tempo não foram empecilho para acompanhar sua trajetória de guerreiro-menino, “com a saga de seu tempo por sobre seus ombros”.
Este guerreiro de Ão, diferente de todos os que existiram até os dias de hoje, possuía um arco e flecha apontados para dentro de sí mesmo, e era deste lugar sangrento que ele extraia muitas cores e traços, objetos mágicos e de desejo humano e sagrado.
O guerreiro de Ão era artista, com a plástica dos contornos da vida densa ele uivava como lobo entre os canaviais que integravam a paisagem de sua Aldeia, e às vezes como caranguejo, para escapar de predadores, se entranhava no mangue, pregado na lama e no caos. Tudo isto para sobreviver a concretude, ao racional, ao pragmático, a esfera kafkiana que nos encerra diariamente, as prisões sem muros...
Soube outro dia, por criaturas aladas, que tentaram, mas sem êxito, fazer dele um grande mito, unificador de todas as ânsias e ambições. O guerreiro até que atentou para a fome de pajés algozes, e num destes jogos de poder se lançou como líder acreditando na honestidade de sua tribo.
Traído pelos seus e desolado em sua tribo, o guerreiro potiguara gritou, na escuridão do ser só, para Tupã que compreendeu o olhar deste guerreiro e lhe preparou uma canoa, e lhe contou um segredo às margens das águas que emergem do encontro do rio com o mar. Atento, ele ouviu, entrou na canoa, não disse uma só palavra, seguiu o curso do rio.
Não olhou para trás, ao se despir de todos encontrou na profundidade do rio a si mesmo. E, na quietude da noite em curso sorriu a Tupã, pois tinha em suas mãos o que sempre havia buscado.

Em homenagem ao meu amigo-artista, guerreiro potiguara, filho de Tupã. Com amor.

Um comentário:

GILBERTO BARRETO disse...

Sandrinha...Adorei o texto....vc, como sempre, incisiva e bela!!!!
O guerreiro de Ão, meu heroi, há tempos não é mais um curumim...é um belo e grande CACIQUE o verdadeiro GUERREIRO!!!!!
Me orgulha profundamente ter acompanhado, embora eventualmente, indescritiveis noites abençoadas e banhadas por chuva e lágrimas; tudo pelo desejo(vivo e viável) de ajudar aos seus iguais, que remotamente, ainda curumins banhados na lama dos manguezais, lhes estendiam as mãos em um pedido mudo de socorro.
Os sonhos nos alimentam a todos e emolduram nossa caminhada pelas existências a fora, com o heroi de Ão não poderia ser diferente.
Sou um homem de sonhos, amor e bem...e é esse reflexo que vejo nos componentes desta tribo, as vezes ainda brutos, mas pedras preciosas que necessitam lapidarem-se com o verdadeiro sentido da mais pura amizade, aquela intereseira no bem e no constante desejo do sucesso e crescimento contínuo - como quem quer carregar no colo!,
Acredito, especialmente, no crescimento e evolução do espirito que é o que somos verdadeira e eternamente...
BEijo grande
Gilberto