quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Pai-ssarinho



Foto: Sandra Raquew Azevedo.
Painho e as mulheres de Abelardo da Hora

No último janeiro perdi meu pai. Fiquei dias a fio, pensando, querendo falar sobre o assunto.  Um texto da Eliane Brum me encorajou a expressar a experiência. Milhões de sentimentos e idéias me povoaram desde o momento que em  novembro soube que seu estado de adoemecimento era definitivo. Em setembro, vindo de São Paulo encontro meu pai em João Pessoa numa rotina de exames. Até então pensei que fosse algo comum aos sertanejos que têm que se deslocar para a capital para acesso aos serviços de saúde. Porque existem romarias religiosas, que são hábitos da fé de quem vive no interior. 
Mas há outros tipos de romaria que são os suplícios impostos pela negação de direitos. No interior do Brasil as pessoas já se acostumaram a esperar milagres de cura, e alguns acontecem como expressam os ex-votos. Lá a gente também vê um poder incrível se manifestar por um saber mais profundo: o das ervas, das plantas medicinais. Há muitos homens e mulheres com essa conhecimento mágico dentro de si, como meu pai e minha mãe, cujo trato sagrado com as plantas resguardou a minha vida por décadas sem nenhuma outra química em meu corpo. Há ainda um hábito gerado pela ausência de saúde preventiva e condições de acesso à uma consulta médica, que é a prática de se automedicar. A automedicação é um estopim, uma bomba-relógio, porque mascara situações de muita periculosidade. Isso também associado ao fato de que o clientelismo mina o sistema de saúde. Se tem uma área no Brasil em que as práticas clientelistas são latentes, é o campo da saúde pública, isso acompanha praticamente toda a gestão do sistema, na prática. 
O clientelismo se expressa desde a indicação dos cargos para gestão de hospitais e serviços de saúde à prática de carregar pacientes para assistência em outros centros, em geral nas maiores cidades. Quando você observa a realidade dos hospitais especializados em oncologia, você constata a humilhação que as pessoas passam por terem de sair de suas casas para um tratamento tão agressivo quanto uma quimioterapia, entre outros. Por viagens de longa distância, por estarem longe de seus parentes, e por não terem muito apoio, exceto pela presença de voluntários que povoam alguns hospitais, trazendo algum tipo de conforto ou esperança. Isso acontece também com os exames de maior complexidade, tendo em vista que grande parte das cidades não dispõe deles, quer seja na rede pública ou privada.
Há quase quatorze anos passados, com  a perda de minha mãe, fui assediada por um gestor público em saúde quando questionei o descaso do hospital com a paciente diabética. Tendo ela esperado mais de seis horas para fazer um teste de glicemia, e por receber um diagnóstico de infarto que só chegou dois dias depois de sua internação, quando todos os sintomas apontavam essa realidade. O gestor do alto de sua infame "superioridade" olhou para mim e disse que ela, já na UTI, estava tomando um remédio de R$ 800,00. Como se o remédio fosse um favor. Poucas horas depois minha mãe morreria. Assim amarguei meu luto, e por longos meses as conseqüências de um stresse pós-traumático pela violência institucional sofrida. Isso acontece com muita gente, infelizmente nesta estatística cabe um número enorme de pessoas, pela ausência de uma assistência humanizada. Aquele, sem sobra de dúvida, foi o pior dia da minha vida, cuja lembrança só é amenizada por um beijo de despedida que recebi na testa por minha mãe, como expressão de um respeito e amor profundo. Assim nos despedimos.
Com meu pai, a assistência foi digna, e fez toda diferença no entendimento de seu processo de adoecimento,  como de sua finitude. Ele foi assistido por médicos do Sistema Único de Saúde, certamente com outro entendimento de saúde pública, o que pôde garantir uma assistência digna, respeitosa. A circunstância não me livrou da tristeza por saber que, concretamente, a cada dia, ele partia, devagar, numa realidade que nada ou ninguém poderia mudar, era definitivo. Isso tem um efeito que ainda nem sei ao certo descrever. Nesses meses vivia tudo com meu pai como se fosse o último minuto. Não fomos enganados, mas meu pai foi, na medida do possível, preservado, e assim pôde ter um morrer com dignidade. Quando se têm consciência de que o amanhã não pode existir há uma mudança radical dentro da gente. No meu caso, o desejo de sair correndo e me agarrar desesperadamente ao meu pai, deu lugar a um equilíbrio que jamais pensei que houvesse existir em mim. 
Caminhamos assim por alguns meses. Ele, na esperança de que a situação poderia ser transformada. Eu, me entregando ao melhor que podia fazer: ao estar junto, alimentado, cuidando, rindo e me divertindo junto com ele. E por incrível que pareça, vivemos nossos melhores momentos, desde os nossos passeios de Lambreta, nos anos 70. Ele reviu a Torre, bairro que passou um tempo de sua juventude. Curtiu muito o entardecer frente ao mar, conversando, rindo. Passeamos por João Pessoa, encontrando amigos e o Centro histórico, ele me contou muitas histórias de sua infância. Ele sempre gostou de passarinho, e de modo poético, muitos passarinhos o visitaram em minha varanda, num lugar em que repousava durante às tarde de seu último verão. 
Pude retribuir um pouco do que recebi, fazendo as comidas de que gostava, dando massagem, lendo a Bíblia, orando, tocando violão e cantando. E por fim, ainda tivemos o Natal, contemplando as estrelas, num luar do Sertão, dentro do mato, no sítio. Falamos de nós, dos antepassados e descendentes. E em momentos não falando nada. 
Depois do Natal sentíamos que a situação se tornava cada vez mais delicada. E assim foi nos dias restantes. Mesmo assim tivemos memoráveis horas na passagem de Ano Novo e em seu aniversário. E, em sua última visita, quando a esperança de meu pai dava lugar a conformidade. Nesse domingo de janeiro ainda ví um pouco de força em seu olhar, e assistimos Jair Rodrigues na tv:  “prepare o seu coração, para as coisas que vou contar, eu venho lá do Sertão, eu venho lá do Sertão, e posso não lhe agradar. Aprendi a dizer não, ver a morte sem chorar…” 
Ele partiu assim como um passarinho no ninho, comia beliscando, se deixando ir dormindo, na rede, aos poucos, consigo mesmo, ensimesmado. Porque era assim mesmo, de muito humor, e poucas palavras, quase tudo dizia com o olhar. Foi assim que passamos esses meses que escorregavam intensamente de minhas mãos, olhando um para o outro, dizendo tudo secretamente, cúmplices de uma peleja pela Vida, sem nunca ter dito um adeus.


Dedico esse texto aos médicos que cuidaram de meu pai: José Eymard Medeiros Filho, Eduardo Sérgio Sousa, Marcelo Gonçalves, Ana Caroline Montenegro, Ayreme Wanderley Ducas e Silva,   Jean Fabrício de Lima Pereira, Danielly Brito e Débora Malacar;  às equipes do Hospital Universitário Lauro e Hospital Napoleão Laureano; Carlos e Icaro Azevedo, pela cumplicidade, e aos amigos e amigas que oraram por nós.