domingo, 5 de outubro de 2008

A mulher (des)habitada




Acordou na véspera de seu aniversário. Sessenta e oito anos faria. Nuvem entreaberta, o sol teve por território, aridez fatti. Como nunca fora acostumada a olhar-se no espelho, esquecera de si mesma, também pudera, com tanta gente ao redor não lhe sobrara tempo. As andanças por entre mercados, as varreduras do terreiro e o cuidado com as plantas eram seus portais por onde passeava de mãos dadas com a esperança. Sonhos? Os nutria no silêncio, quase secretos uivavam quando suas lágrimas escorriam. Dizia apenas que de tanto chorar seus olhos secara, eram como o Saara, desertos que vez por outra revelavam oásis.
As memórias eram o que mantinham sua vivacidade, pois nelas inventara seu próprio livro de estórias. Tapete de símbolos fragmentados que como gabeths era cheio de cores, matizes, sons de uma cidade que era seu templo. Percebera que nunca deixara este lugar, no cotidiano fazia suas reformas. Indo sempre lá, no mesmo lugar, o refazia para fazer de sua vida algo possível.
As ruas, agora em sépia, as conhecia de cor, eram suas fotografias movediças: os trilhos do trem, a velha estação, a casa do outro lado em ruínas, o mercado. Antigas vozes que ainda falavam. Sua rotina como uma moenda mastigava a tudo e a todos, e posteriormente recompunham a epiderme e raízes profundas, porque ela como uma árvore, ao passo que se erguia ao céu, penetrava o solo fértil da terra.

Embora ao olhar-se no espelho encontrasse pouco de si, era observando seus pés e mãos que se auto-reconhecia. Andando de mãos dadas com antepassados e predecessores percebia sua plenitude, mesmo que muitas coisas desse em falta. A ampulheta de seus dias parecia um cálice inesgotável.
Ela, nestes dias de movimento intenso das nuvens, celebra a perenidade intocada dos viventes e a ruptura com seu corpo, prisão sem muros, lugar de desejos e complexidade. Sente-se desabitada e livre, renascida. Com suas cinzas ao vento se reinventa com autonomia profunda. Nunca mais se perderá de si mesma, não mais desencontrará os seus.
Se por ventura alguém encontrar um oásis em seu deserto interior talvez seja a expressão de sorriso da mulher desabitada que acompanha a todos, dando sinais de que as andanças, intermináveis, por entre um labirinto quase surreal nos mantém num contínuo diálogo íntimo com o eterno em nós.
Por mais assustador que possa parecer este lugar, nele pode residir às chaves que abrem e fecham as feridas, as memórias, os rios de sonhos que fluem de um lugar para outro como folhas ao vento, mariposas ao sol, luas novas nas plantações...

Em memória ao nascimento de minha mãe, minha Árvore da Vida.

6 comentários:

Irmãs Duarte - Art'Nativa disse...

emocionante esse texto Sandra, lembrei da minha também e não preciso dizer o quanto me tocou. Bravo pela sua sensibilidade!!!

Livraria Casa do Livro disse...

legal Sandra adorei seu Blog, temos muito o que aprender com voce, ainda bem que vamos ter uma aula sua no mestrado. beijos

Fabiano disse...

Sandra,
Muito bom encontrá-la aqui no mundo virtual expondo seu pensamento/idéias...

Unknown disse...

esse blog tem um nome fantástico e esse texto de abertura é simples mente belo....tua mãe, nossas mães, nossas mulheres sertanejas e suas rugosidades de memórias a nos emocionar....bjusssss, belo.

Josefina Hurtado disse...

me gustaron mucho las imágenes que brotan del texto...

Anônimo disse...

Amiga!
Amei a profunidade do seu texto, reflete bem a tua sensibilidade. A fotografia então está lindíssima.
Bjão, te amo!!!
Neide/SP