sábado, 4 de outubro de 2008

Abaixo todas as fogueiras!


As palavras acima foram usadas por Rose Marie Muraro ao me dedicar seu livro Texto das Fogueiras, bem no início do século XXI. O livro recorre aos escritos históricos da Inquisição mostrando o discurso dos inquisidores, aborda também a satanização da sexualidade feminina e as condutas sociais de subordinação das mulheres nas sociedades estruturadas a partir do discurso patriarcal.
Vendo recentemente nos jornais os acontecimentos envolvendo uma nova “caça às bruxas” às mulheres que viveram a experiência do aborto não fico surpresa, todavia vem um sentimento de indignação perante a hipocrisia de inúmeras instituições e setores sociais do Brasil, que para fugir do ampliação do debate sobre este fenômeno social complexo, optam por construir no espaço público uma reflexão e condutas pautadas na criminalização das mulheres.
Ao lançarmos um olhar unilateral sobre as práticas de abortamento no Brasil e na América Latina caímos num erro tosco de não compreendermos a realidade que vivemos, de observamos que os fenômenos da vida social, entre eles o aborto, está enredado em inúmeras questões, não apenas a realidade de pobreza pelas quais as mulheres têm que enfrentar cotidianamente, mas questões simbólicas de dominação muito mais profundas e que muitas campanhas pró ou contra o aborto certamente não dão conta em sua totalidade.
Aborto em nossas sociedades latino-americanas certamente é uma ferida aberta, um sintoma bem evidente não apenas da pobreza em si, porém das desigualdades sociais que fazem com que muitas mulheres em situação de abortamento ou não sejam tratadas nos serviços públicos de saúde como estorvo, como lixo humano. Não são poucos os relatos e as evidências dos maus tratos e homicídios pelo corpo feminino negligenciado pelo Estado brasileiro e pela conduta homicida do pensamento patriarcal. E disso pouco se comenta ou sequer se responsabiliza o Leviatã pela violência institucional cometida dia após dia.
Claro que as atitudes de acender as fogueiras da Inquisição pós-moderna são um caminho mais óbvio, até porque cria inevitavelmente todo um capital social que gera status as diversas instituições.
Difícil mesmo é tratar fenômenos sociais como este com lentes mais humanizadas, com olhares de abelha, multifocais, substituindo o fogo, a lenha e a inspiração bélica e o “instinto” da caça.
Quando penso nesta imagem de mulheres sendo caçadas por suspeitas de aborto acho tudo muito surreal, numa sociedade como a nossa e em qualquer outra. Em uma das matérias que vi dizem que só no Mato Grosso do Sul são mais de 10 mil. Dá para imaginar num sistema social-político-jurídico tão “justo” e “exemplar” como o nosso atuando com veemência para punir as “mulheres suspeitas”.
Fico então aguardando o dia em que esta mesma “eficiência” paire sobre os casos de violência sexual, homicídio, estupros, também para os casos de corrupção, pedofilia, mortes no trânsito, homofobia, de contaminação do leite, a fila na espera de transplante, etc, porque estes como tantas outras situações caóticas da realidade brasileira fazem parte de uma teia complexa de problemas sociais que precisam ser superados com mais coerência, um debate menos medíocre e com a superação de uma violência maior, estrutural e simbólica, da qual de uma forma ou de outra muitos de nós somos vítimas e, em alguns casos, algozes...

Sandra Raquew dos Santos Azevedo
é jornalista e autora do livro Gênero, Rádio e Educomunicação, pela Editora da UFPB.

3 comentários:

Unknown disse...

Parabéns pelo novo espaço!
O nome do blog tb é super-chique.
bjs

Irmãs Duarte - Art'Nativa disse...

Ei Sandra, arrasou com o texto!!! Parabéns minha amiga pela iniciativa desse blog. Com certeza esse será mais um espaço de luta em prol da dignidade feminina tão negligenciada nessa sociedade machista e patriarcal. Que suas palavras funcionem como um "balsamo" de libertação de nossos aprisionamentos mentais sociais, políticos e ideológicos!
Parabésssssssss!!!
Bel

Mara disse...

Olá minha querida,

você me trouxe alegria nesse domingo, até estava um pouco triste, mas logo que li seus textos parecia que tinha sido escrito para mim ou melhor para minha mãe principalmente o da Mulher (des) habitada, nossa é a história de minha mãe que agora está tão necessitada de cuidados,mas ela continua forte, a cada dia está superando esse desafio de ter tido um AVC, este texto veio me alimentar e mostrar que também sou essa mulher capaz de superar desafios. Adorei! que muitos e muitas tenham a oportunidade de ler para se ver melhor, se sentir mais e viver mais.

Um beijo no coração,

Mara