quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Vidas Sintéticas


Muito se discute hoje sobre as mobilidades, os fluxos, a vida líquida, os nomadismos... Há meses atrás um diálogo com meu filho me alertou para uma das experiências da modernidade tardia. Ele me pedia insistentemente um bicho de estimação, eu argumentava em sentido contrário ao seu pedido: não dá filho, moramos em apartamento. Viu que não me convencera, sentenciou: então me dá um bicho sintético. O que filho? É, se não posso um de verdade, então dá um bicho sintético? Insiste o menino. Pergunto o que é então. Um bicho virtual, responde.
Achei sem dúvida engraçado porque o sintético usado para pedir o bichinho vinha de uma outra conversa que ele escutou sobre os sucos de laranja industrializados, que vinham com gomos “naturalmente” sintéticos.
Este diálogo com uma criança me alerta para uma das nossas contradições contemporâneas: tanto mais líquidos, cada vez mais sintéticos.
Os corpos mumificados do presente, customizados sob o mesmo modelo, a estética atual não nos apresenta muitas opções. A comida sob a mesma embalagem, perdendo-se aos poucos a diversidade da cultura alimentar. O dinheiro de plástico, mesmo que não exista, mas sustenta a ilusão de poder consumir. E a vida sintética vai seguindo seu curso...
Mas o que acho mais maluco na botoxização da vida cotidiana é a plástica das relações afetivas contemporâneas. Nisto o Oswaldo Montenegro acertou em cheio quando escreveu A Lista. Faça você mesmo a sua lista de grandes amigos... A amizade é hoje um sentimento em extinção. Não temos tempo, ah e nem sempre resulta em benefício próprio, então perguntamos, vale a pena?
No lugar de fluidez e liberdade das nossas sociedades, também se esconde a faceta sutil da subordinação simbólica a qual somos enclausurados quase diariamente. Mas isto tão pouco importa se somos famosos, vips, públicos. Um minuto de fama pode resultar até na imortalidade, nem que para isto eu precise espetacularizar a morte, especialmente a dos outros.
As vidas sintéticas são até interessantes, um misto de patético e entretenimento, mas a sensação é a de que algumas coisas estão morrendo lenta e profundamente, a capacidade de sentir intensamente o lugar singelo da existência...

Sandra Raquew dos Santos Azevedo.
A Ìcaro e Carlos que não me deixam perder a poesia, e Nina (nosso animal de estimação e, de verdade) pela alegria trazida.

3 comentários:

Carlos Azevedo disse...

Oi,
Adorei o texto sobre as "vidas" sintéticas no mundo contemporâneo. Parabéns!

Belarmino Mariano disse...

Sem meias palavras como diz Siqueira...é um texto que nos ajuda a uma reflexão das cosias existentes e das inexistências signifcadas...pensei logo em um ursinho de pelucia ou algo assim, mas me parece que Icaro conseguiu ultrapassar a linha da modernidade...redefinindo o sintético na perspectiva do virtual existente...isso é pós estruturalismo arripiante...parabens pela sutiliza do texto.

roncalli dantas disse...

Olá sandra,
gostei muito do texto.
parabens