domingo, 28 de dezembro de 2008

Dois dias em Paris


Sempre gostei da Julie Delpy, protagonista de Antes do Amanhecer. Mesmo não a vendo constantemente nas películas, passei a apreciar os roteiros construídos por ela e seus parceiros, como o Ethan Hawke. O que me toca nos neles é esta capacidade de não ser panfletária e tratar idéias e sentimentos de modo inteligente.
Ser panfletário é uma chatice, e quase todos nós o somos, alguns mais outros menos. Alguns podem até achar que são austeros, ou que firmeza na afirmação de idéias próprias tem a ver com individuação, personalidade, autenticidade. Na verdade, ter sempre na ponta da língua um ponto de vista definido e por vezes até definitivo, sarcástico e pseudo instruído torna-se uma incidência no vazio, é a sensação que tenho quando me deparo com o absolutismo fluido dos pensamentos conservadores e das mentes pós-modernas (que em determinados momentos parecem gêmeos).
É um prazer instantâneo, dionisíaco e fecundo poder assistir Dois dias em Paris, porque nem sempre tudo está na ponta da língua, mas nas neuroses cotidianas dos afetos e da racionalização da vida. O filme trata não de romance, drama, comédia, aventura, mas de idéias que nos povoam, de subjetividades silenciosas, de “verdades” que nem sempre podem ser ditas, de rupturas com o que seja correto e incorreto.
Quando me percebo em roteiros como estes, tudo soa muito como espelho, antropológico reflexo de tudo que vi e “ainda não vi”. E me vem uma ânsia de restituição de mim, pensando onde foi que me perdi, e nos lugares em que posso melhor me encontrar...

Sandra Raquew dos Santos Azevêdo é doutoranda em Sociologia/UFPB.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Vidas Sintéticas


Muito se discute hoje sobre as mobilidades, os fluxos, a vida líquida, os nomadismos... Há meses atrás um diálogo com meu filho me alertou para uma das experiências da modernidade tardia. Ele me pedia insistentemente um bicho de estimação, eu argumentava em sentido contrário ao seu pedido: não dá filho, moramos em apartamento. Viu que não me convencera, sentenciou: então me dá um bicho sintético. O que filho? É, se não posso um de verdade, então dá um bicho sintético? Insiste o menino. Pergunto o que é então. Um bicho virtual, responde.
Achei sem dúvida engraçado porque o sintético usado para pedir o bichinho vinha de uma outra conversa que ele escutou sobre os sucos de laranja industrializados, que vinham com gomos “naturalmente” sintéticos.
Este diálogo com uma criança me alerta para uma das nossas contradições contemporâneas: tanto mais líquidos, cada vez mais sintéticos.
Os corpos mumificados do presente, customizados sob o mesmo modelo, a estética atual não nos apresenta muitas opções. A comida sob a mesma embalagem, perdendo-se aos poucos a diversidade da cultura alimentar. O dinheiro de plástico, mesmo que não exista, mas sustenta a ilusão de poder consumir. E a vida sintética vai seguindo seu curso...
Mas o que acho mais maluco na botoxização da vida cotidiana é a plástica das relações afetivas contemporâneas. Nisto o Oswaldo Montenegro acertou em cheio quando escreveu A Lista. Faça você mesmo a sua lista de grandes amigos... A amizade é hoje um sentimento em extinção. Não temos tempo, ah e nem sempre resulta em benefício próprio, então perguntamos, vale a pena?
No lugar de fluidez e liberdade das nossas sociedades, também se esconde a faceta sutil da subordinação simbólica a qual somos enclausurados quase diariamente. Mas isto tão pouco importa se somos famosos, vips, públicos. Um minuto de fama pode resultar até na imortalidade, nem que para isto eu precise espetacularizar a morte, especialmente a dos outros.
As vidas sintéticas são até interessantes, um misto de patético e entretenimento, mas a sensação é a de que algumas coisas estão morrendo lenta e profundamente, a capacidade de sentir intensamente o lugar singelo da existência...

Sandra Raquew dos Santos Azevedo.
A Ìcaro e Carlos que não me deixam perder a poesia, e Nina (nosso animal de estimação e, de verdade) pela alegria trazida.